A caminho de Curvelo

O ônibus segue em velocidade moderada pela BR 135. Manhã de sol. À minha esquerda, uma parede de pés de eucalipto. Por trás dessa parede, um mar de pés de eucalipto. O controverso eucalipto. Quande eu era criança, e o tio Generoso tinha uma casa mais bonita do que a nossa, em cuja frente se estendia um extenso gramado, ele plantou dois pés de eucalipto na borda do tapete verde. Árvores de tronco liso, folhas estreitas e sempre verde, independente da estação do ano, cresceram numa velocidade bem acima da experimentada pelas árvores que conhecíamos até então. 

Aquelas duas árvores esticadas para o céu, de certo modo, distinguiam o meu tio dos demais. Por muito tempo, apenas ele possuía eucaliptos no jardim. Nunca me perguntei como aquelas árvores tinham chegado ali. E por não ter tido a curiosidade de saber, esse continua sendo um dos mistérios que acumulo para decifrar, talvez, algum dia.

Os exemplares que serviam de distinção para o meu tio carregava consigo algumas polêmicas. Diziam que aquelas árvores, provenientes de uma terra distante, eram capazes de causar sérios  danos ao cerrado. O seu processo de crescimento rápido exigia uma enorme quantidade de água, então suas raízes profundas capturavam toda a água existente no lençol freático, fazendo secar os rios e córregos. A monocultura da espécie provocavam uma espécie de “deserto verde”, impedido a diversidade vegetal e extinguindo a fauna, nos lugares onde era implantada. O eucalipto era uma espécie de árvore do mal.

Muito tempo depois é que descobri que o mal não está na árvore, mas, no modo como é cultivada, ou seja, nas atitudes equivocadas de nós, seres humanos. O surgimento e expansão dos sistemas agroflorestais nos mostra que o seu manejo adequado resulta em inúmeros benefícios, produção de biomassa, adubação verde, etc… 

Até que enfim, o cerrado deu o ar de sua graça. Vejo copaíbas. Meu pai andava longe para colher o óleo da copaíba que fica do outro lado do rio das Velhas. Não apenas meu pai, mas a comunidade inteira, por várias gerações. Parece que havia a crença de que apenas o óleo daquela copaíba possuía as propriedades medicinais. A gente toda costuma chamar a árvore de “pau d’óleo”; copaíba é um nome que descobrimos depois. 

Papai e mamãe construíram a primeira casa própria com as próprias mãos. Amassaram o barro, modelaram os adobes e os ordenaram de modo a formarem paredes. Depois, minha mãe misturou terra de formiga, estrume de vaca e cal e revestiu as paredes. A casinha ficava sob uma copaíba. Naquele tempo ela já era uma árvore alta, mas de tronco fino e galhos tímidos. Mas cresceu, engrossou e seus galhos, agora robustos, passaram a ser uma ameaça para a nossa integridade física. A casinha também ficou pequena e a gente teve que levantar uma nova casa perto dali. A copaíba segue gigante. Mas, não dá óleo. Desconfio de que o que falta é  a gente construir uma cavidade em seu tronco, igual o daquela que tem lá do outro lado do rio, cavado por não sei qual antepassado nosso.

Eucalipto de novo; o cerrado durou pouco na borda da estrada. E pastagens. E pequenas fazendas leiteiras. Ainda há pouco vi as barraquinhas onde se vende pimenta, óleo de pequi, frutas do cerrado e outras coisinhas. Um dia, quando passar por aqui de carro, vou parar e explorar esse universo das bugigangas aromáticas e gustativas do cerrado.

Passamos pela entrada da Fazenda São Sebastião. Alimentei por anos o desejo de conhecer a São Sebastião, desde o momento em que, recém chegada a Caetanópolis, quis conhecer a cidade. Descobri a saga dos Mascarenhas, cujo start se deu na Fazenda. Li sobre a epopéia da construção de uma fábrica de tecidos no sertão mineiro em pleno século XIX e sobre como essa fábrica deu origem a um império industrial têxtil. Ouvi histórias sobre o surgimento de algumas vilas e cidades e sobre a consolidação e expansão de outras. E no Museu Têxtil Décio Magalhães Mascarenhas iniciei minha trajetória de pesquisadora; meu primeiro tema de pesquisa esteve ligado, naturalmente,  à indústria têxtil mineira em seus primórdios. 
Detalhe da escada que leva à Capela da Fazenda São Sebastião

Quem me proporcionou a experiência fantástica de conhecer a São Sebastião foi o Dr. Aníbal Pinto Mascarenhas Neto, médico conceituado em Caetanópolis, descendente direto dos fundadores da Cedro. O Dr Aníbal é um sujeito que traz em seus traços e suas maneiras toda a ancestralidade construída desde os tempos do Velho Mascarenhas. Em janeiro de 2015, o Dr. Aníbal, sabedor do meu interesse pela história de Caetanópolis e da família Mascarenhas, convidou-me para uma palestra em Belo Horizonte. A palestra seria proferida pela então doutoranda em História Econômica pela Scuola Dottorale del Veneto in Studi Storici, Geografici, Antropologici, na Itália, Cláudia Marum Mascarenhas Martins, cujo tema de pesquisa girava em torno das vilas operárias, sua estrutura e organização. Grata surpresa! Não só o tema era muito pertinente, como a Cláudia citou como uma de suas fontes um artigo meu apresentado no XIX Encontro Regional de História promovido pela ANPUH, seção Minas Gerais no ano de 2014. Acabei contribuindo com a discussão e o encontro se mostrou bastante produtivo.

Nos dias que se seguiram a esse encontro, a Cláudia esteve em Caetanópolis e o dr. Anibal promoveu um jantar divino em sua casa. Naquela ocasião tive a oportunidade de manifestar meu sonho antigo de conhecer a São Sebastião e o Dr. Aníbal logo se propôs a me ciceronear neste passeio. Como membro da família Mascarenhas, ele tinha livre acesso às suas instalações. Impossível não evocar o clichê: a visita àquela fazenda é como um retorno ao passado, especialmente para quem, como eu, tanto leu sobre os fatos que passaram ali. A identificação é imediata. Quem já leu o meu conto intitulado “O Convite”, logo percebe de onde veio a inspiração para composição do cenário. 

Estou do lado em que é mais difícil ler as placas à beira da estrada. Esse não é um caminho que faço com frequência. De modo que não sei exatamente em que altura do trajeto eu me encontro. Estamos no inverno e o cerrado é seco. Há quem diga que não há vida no cerrado seco. Eu discordo. Até porque, daqui da janela do ônibus, vejo flores amarelas e lilases. E olha que ainda nem chegou o mês de setembro!


Mais eucalipto. Neste trecho já se encontra no ponto de colheita. As ferramentas modernas já cortaram e amontoaram boa parte dos troncos, principal produto da cultura, revelando um solitário pequizeiro, que por uns bons anos esteve mergulhado no mar da plantação de eucalipto. A lei proíbe o corte do pequizeiro. Mas, não o livra da solidão da monocultura. Se a árvore nativa pudesse escolher, talvez preferisse o sacrifício definitivo a ser um pária em seu habitat natural.

Finalmente, entramos na cidade de Curvelo. O Ônibus seguirá em sua trajetória diária rumo ao sertão. Mas, eu ficarei por aqui. Vou em busca da história de minha terra, de recuperar e sistematizar os registros do passado de Santana de Pirapama, antiga Traíras, terra de Monsenhor Roque e dedicada à avó de Jesus.
Antiga estação da EFCB em Curvelo-MG - Hoje funciona aí o Museu Municipal e a Biblioteca Pública Infantil Municipal de Curvelo

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